terça-feira, 22 de novembro de 2011

Talvez

Por vezes, estivera eu naquele quarto onde era impossível manter a camisa no corpo, porque o calor era excessivo e o suor inevitável. Sentado num banco de madeira, mantinha por horas as costas dolorosamente curvadas, com os cotovelos apoiados sobre a mesa em que repousava um livro aberto e uma luminária que ardia incessantemente, dia ou noite, liberando um cheiro acre e revelando a poeira que circundava de forma minuciosa todos os objetos presentes. Ali, entre estantes de livros devorados pelas traças, sempre solitário e escuso, na escuridão de uma sala que não via jamais o sol, degustei as horas de anos que passaram sem mostrar suas caras, já que meu tempo não era medido com relógios e calendários, mas com as necessidades de dormir e comer e ler. Também o ambiente, visivelmente descuidado, sujo e quente, não me incomodava. No fundo, acredito que jamais estivera realmente ali, mas imerso nos mundos de Kafka e Cortázar, Rosa, Borges e Grass. Só mais tarde conheci García Marques e a sua imensa batalha de vida contra a solidão – e a solidão, eu acreditava que a aceitava da forma mais natural possível, nem passiva nem instintivamente, apenas a aceitava como condição obrigatória do meu presente, e que melhor era aproveitá-la que combatê-la, pois meus recursos eu guardava para lutar outras guerras: as de Aureliano Buendía pelo seu próprio orgulho; as de Ché, que fumava um cigarro para fazer as pazes com a vida e deleitava-se imaginando Mozart, deitado na grama e banhado pela noite estrelada de sangue. E pensava, sempre antes de dormir, que teria desperdiçado meu tempo, enquanto meu irmão ganhava altura e peso e perdia cada vez mais rápido os traços infantis. E me arrependia de não tê-lo colocado ao meu lado para contar-lhe do que se tratavam tantas páginas com letras onde se escondiam vidas e passados e amores: eu, ensimesmado em um quarto escuro que do sol só sabia o calor, quase satisfeito em minha solidão quase deliberada, arrependendia-me por não aproveitar a infância do meu irmão, que se desgastava continuamente e polia o rosto e os cabelos com a maturidade dos anos. Ah, e quantas noites chorei com soluços abafados pelo travesseiro, afundando o rosto no pano molhado de lágrimas e pensando que, talvez, estivesse a perder o melhor que me ofereciam as vozes e o mundo, e que meus dias passados debruçado sobre livros eram dias de ficção, também passados debruçado sobre a matéria impalpável da irrealidade, e me iludia com a pretensão do esquizofrênico, e criava para mim escudos de vidro que se quebravam ao primeiro contato com mamãe, que se dissolviam no assovio de Rodrigo e nas gargalhadas de papai. E não estive satisfeito. Saí do quarto, deixei para sempre os livros que foram meus únicos companheiros de adolescência, e, no entanto, não me entreguei ao carinho que me guardavam meus pais e meu irmão, mas me distanciei ainda mais deles e do que eles podiam me dar, e viajei três mil quilômetros para ser o mesmo Rômulo que perdia o dia e se arrependia de tê-lo feito à noite, o mesmo que sentia a dor de todos juntos e a imaginava como um apelo à santidade, e que perdia a doçura de seu espírito na pornografia e em relações desnecessárias, supérfluas, em que se quebrantava de maneira irremediável o ardor da paixão e a capacidade para amar verdadeiramente. Eu não mudei nada, e ainda choro à noite por estar invariavelmente só; e torturo minha mente, espremendo-a entre o pragmatismo ao qual me obriga o mundo e a indolência e beleza de que necessita minha alma. Possuo CEP, RG, CPF – e, contudo, jamais soube realmente onde estou e quem sou. Talvez eu seja o paraíso e o inferno inescrutáveis.

2 comentários:

Anônimo disse...

Tem momentos que me sinto como você.

Anônimo disse...

perfeito