segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Revolver

Abro os olhos enterrados nervosos na areia da praia.

Meio dia. O sol arde sufoca e o lobisomem uiva na torre mais alta de um castelo de areia que o mar acaba de engolir. Estou só e por toda parte as flores de uma primavera que não veio dançam como borboletas cegas perdidas no balbucio de suas asas. Vampiros nadando no aquário do meu quarto banhando a lua que goteja cal na ponta da minha língua rígida estendida como uma ponte para a morte e lentamente a luz desenha no meu peito a sombra de mim mesmo quando eu já não teria sido, ou será que... Afunda a cabeça na lama, desdenha o teu corpo diamante olha só como brilha, olha, a carne brilha o fátuo brilho da impermanência, é fácil deixar-se enganar, toma esse livro em tuas mãos e folheia as tuas páginas de ócio, meus desejos dissolvidos nas algas que pouco a pouco enroscam nos teus dedos para não soltar nunca mais. Permita-me, senhor, levar o teu olho de rubi como recordação do pirata afogado na pia de sua própria casa entre baratas que escorriam pelo ralo seus corpos gentis e pedaços miúdos de ouro que em verdade eram o sol se pondo no horizonte em chamas, uma bela imagem para apreciar antes da morte, sem dúvidas o senhor foi condecorado com o louro do paraíso celeste, mas como o senhor me diz que o paraíso é pueril e indigesto, começo a achar que então ninguém tem mesmo sorte e estamos todos condenados a viver e reviver nosso inferno cada dia da semana. Estamos tão confortáveis deitados numa cama de espinhos que eu te abraço como se os tempos fossem outros e eles ainda não tivessem chegado para marcar com sua presença nossos passos no asfalto pegajoso, porque eles vieram disseminar a minha a tua a nossa culpa e nos chicoteiam com olhos de anjos e carícias de amantes, rasgando a cueca velha na tentativa de... pintaram um retrato, imagina, um retrato enorme de mim mesmo e como castigo me fizeram mirá-lo fixamente e então eu já não sabia se eu era eu ou se era o retrato ou se nenhum dos dois, lancei mão de minhas correntes e tentei voar com asas de concreto mas caí e esfarelei minha cara ali mesmo no chão da rua, eles mijaram no começo da ladeira e eu via lentamente o destino inevitável chocar-se contra o meu rosto. No entanto, foi nas feridas abertas e no sangue manchando o peito que descobri quem era e pude enfim me levantar contra os carecas de chapeuzinho, crianças diabólicas abanando suas cruzes e cantando de mãos juntas, tão bonitas, por que foi que nós fugimos de lá mesmo? faz tanto tempo... eu já nem me lembro... Mas é melhor ficar do jeito que está, vista-se que temos o mundo só para nós. Então eu beijo as costas da mão que tu estendes para mim, cravo os meus olhos nos teus e percebo que nem todos estão condenados ao inferno interminável, que talvez tu e eu sejamos os dois órfãos por quem olha o Pai complacente, sim, não sei eu, mas tu tens algo de angelical, algo que não se perdeu na queda e eu não quero que se perca jamais, o meu pedaço de nuvem onde sonho tranquilo enquanto corremos descalços com saudade de casa... Por isso eu te peço olha por mim, meu bem, olha, que teus olhos derramam a sede da bondade do Pai por onde quer que cantem.

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