terça-feira, 2 de outubro de 2012

doce

Acendi o cigarro, dei o primeiro trago, e então, debruçado sobre o parapeito da janela, bebi um gole de café - o vapor quente subiu e embaçou meus óculos, e naquele momento foi como se de novo eu estivesse na tua varanda, vendo o sol e o dia que nasciam, embriagado pelo amor e por aquela música que faziam as ondas que iam e vinham, como eu mesmo disse pra ti, é o mar respirando, e tu sorriu e me deu um beijo e então eu escrevi um poema sobre um café muito muito doce e os beijos do mar sobre a praia, mas o meu café está terrivelmente amargo, eu o sinto derramar-se sobre minha garganta e então descer, lentamente descer e aquecer meu coração vivo de espasmos de ciúmes e sobretudo de saudade, saudade da tua mão e do teu colo, de tudo aquilo que era o mundo e a vida e que hoje não é mais que lembrança, meu irmão, meus pais, a casa, o quarto, o céu, tu... Não consegui fumar mais, minha consciência pesa uma tonelada, apaguei o cigarro e ouvi lentamente o piano que tocava em algum lugar, ao longe, talvez minha imaginação, lembrei de mozart e de guevara, mas daqui eu não vejo o céu e muito menos as estrelas, prédios e mais prédios me tapam a vista e eu penso que é isso exatamente o que eles querem, matar o eu mais íntimo, a parcela que soube se proteger bastante bem até agora, que ainda está viva e pulula como a última chama da noite, e a noite que acaba de começar e a cidade já morta, apenas os boêmios se sustentam fora de seus casulos, só eles estão prontos para o beijo que a madrugada nos dá entorpecida, um beijo molhado como uma fina chuva que cai e molha nossos ombros, e então aquela chuva quando eu te disse sempre teu, o teu cabelo molhado caindo sobre o teu rosto e eu achava que não haveria nada mais belo, e não há, nunca houve, carregarei a tua cicatriz nas costas como a marca de um chicote que me feria docemente, garrinhas de tigre ou qualquer coisa parecida, o engraçado é que eu falo tudo isso com saudade do que tu nunca foi, afinal eram os meus olhos perdidos em meio a névoa que te confrontavam como se tu fosses meu próprio espelho, eu anjo maternal cuidando de mim mesmo numa alucinação inconsequente, e então perceber como um acordar repentino que tu jamais foi ou será doce como aquele café ao qual atribuí tanto valor, mas exatamente o contrário, o amargo que fica na língua e obriga qualquer um àquelas caretas vergonhosas, e são exatamente os lábios de mel que escondem a língua bifurcada, o teu veneno correndo nas minhas veias, o teu sorriso resplendendo na memória e então a tua imagem real, os telefonemas de todas as doses de todas as noites, os detalhes sobre uma traição que hoje tu negas, as várias fases, as várias faces, e então eu descubro o amor mais puro e simples, sem desejo, sem egoísmo, pura atenção e cuidado com aquela que poderia ser minha filha ou minha irmã, nas minhas costas correndo pelo corredor enquanto teu olhar me segue ao longe, talvez arrependida, talvez amargurada pela tua presente impotência, de qualquer forma quando volto a cabeça ainda consigo te distinguir, com aquela sede e a língua esmagada pelo peso da culpa, agora é a hora, entro numa sala e sou eu com a mulher da minha vida que nunca imaginei, nenhuma paixão, nenhum diabinho cutucando meu peito, apenas um profundo sentimento talvez gasto e já farto de si mesmo, mas conservando nas suas entranhas a pureza que faz sempre um homem acordar mais perto da santidade, mais distante do pecado de cada dia, o sabor do café de manhã cedo, o pão massa grossa quentinho com a manteiga derretendo, uma mordida, duas, são sete da manhã e todos temos que trabalhar, nesse mundo é melhor se manter em pé, e melhor é se manter em pé ao lado de outra pessoa também em pé, de mãos dadas, juntos até a alma, como dois bêbados que caminham abraçados numa rua de piçarra, dois bêbados abraçados, de uma vez por todas e em paz, amém.

5 comentários:

Anônimo disse...

Ér.. Amém!

Anônimo disse...

Hah. Esse eu gostei. Bom texto.

Boas verdades.

Dani Florêncio disse...

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Podemos trocar experiências na escrita..abraços!

Anônimo disse...

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