segunda-feira, 4 de julho de 2011

um sonho recorrente, uma experiência - a mais

o asfalto frio comendo a pele dos meus pés – fogo no chão das três e meia – corri horas a fio descalço esqueci a camisa no sofá de casa eu não senti os seis graus que faziam naquela madrugada eu não senti a dor do sangue nos calos meus olhos não estavam ali. meus olhos não estavam ali vendo o resto da chuva sentindo o gosto da chuva o vento no rosto os cabelos molhados chicoteando meus olhos não estavam ali vendo os mendigos dormirem quase confortáveis quase como anjos expulsos do céu quase quase quase como eu corria sem saber por quê sem ter pra onde realmente ir mas eu corria e a paisagem era sempre o mesmo recorte de prédios empilhados uns por cima dos outros escondendo o céu que se erguia por detrás de tudo – uma edificação inconcebível. inconcebível eu estava encharcado não sei se por chuva não sei se por suor meus pulmões queimavam todos os cigarros fumados desde a infância e eu sabia, eu sabia que meu coração diria já chega e seu grito seria fulminante – uma bomba explodindo no meu peito – minhas pernas choravam por ajuda e eu não escutava meus ouvidos não estavam ali não estavam no barulho dos meus passos apressados do meu fôlego que já faltava não estavam no gemido em qualquer beco e nem nas sirenes que vez ou outra cantavam os meus ouvidos não estavam ali. os meus ouvidos não estavam ali me perdi porque nem os meus olhos nem os meus ouvidos estavam correndo comigo e quando tudo ficou escuro o que pude vislumbrar foi a porta da tua casa em minha frente, e eu suavemente, com a delicadeza da culpa, o silêncio natural da culpa, girei a maçaneta e entrei, pisando com sapatos sujos de lama o teu tapete preferido, fechei a porta atrás de mim e te ouvi, te vi chegando com uma toalha envolta nos cabelos, devia ter acabado de sair do banho, então foi fácil ignorar que eu era um espectro de toda a dor, apenas uma sombra do sofrimento e da agonia de outrora, foi fácil ignorar as manchas pretas no tapete, o sangue que se misturava ternamente com toda a frágil arquitetura do meu último desejo – uma mancha vermelha na vista turva – e foi fácil também deixar cair a toalha no chão úmido e enlaçar os braços no meu pescoço, foi tão fácil quanto receber os teus beijos que vinham como um alento infinito – eles ainda não terminaram – e então os teus olhos brilharam com a luz que entrava pela janela, teu quadril foi de repente uma naja em sua dança venenosa, mortal, e também foi fácil escutar o teu sussurro ao pé da minha orelha – já não sei qual -, foi mais que fácil – um prazer indizível – e foi uma canção o que naquela noite embalou o meu sono final. Eu sei onde meus olhos estavam nos teus, onde os meus ouvidos calaram a tua voz, onde perdeu-se o meu tato na tua pele, o cheiro de rosas que derramaram o seu vermelho nessa rua, agora. escuto as sirenes outra vez, cada vez mais perto, algumas vozes também não muito distantes, eu pareço não estar ali e, na verdade, não estou, o meu corpo estatelado no asfalto, a minha realidade é o chão fragoso, a dureza dos sentidos, sinto os flashes de uma câmera – estarei amanhã nos jornais, penso, uma pena. as imagens vão novamente se apagando, um manto enegrecido cobre o mundo lentamente – tu seguras a minha cabeça com as duas mãos e o teu sorriso se desenha bem perto da minha boca, nossos lábios se tocam, e o nosso abraço vai além do próprio fim.

2 comentários:

Edson. disse...

um texto lindo.

Anônimo disse...

muito bom, em verdade.