sábado, 23 de outubro de 2010

agradecido

madrugada. entre lençóis dorme
o câncer de uma pictórica realidade
que me abate com mãos enluvadas,
polida e cordialmente. não me cabe
fugir senão na vigília. pois que assim
seja: que eu durma no seio da noite
o seu sono estrelado, com os olhos
guardando o fulgor de constelações
infinitas, e que o meu choro seja
o mais belo poema jamais escrito –
em linhas imaginárias, desenhando-se
com traços ébrios e desenvolvendo
na sombra sua postura complacente:
uma mão perdida entre os cabelos,
distraindo-se em um ou outro afago
ou suavemente descendo ao peito
para estender-se como uma criança,
doce, doce, doce...

já quase amanhece... um silêncio
inquietante repousa sobre o ar num
lento dissolver-se ante a cidade
que desperta - no bolso, o alarido
brutal de toda uma geração perdida
em seus gritos decretando a mudez...

irmão, não te aborreças, mas o sono
não me seduz. hoje me entregarei ao
mundo como quem desdenha de sua
própria liberdade; esquecerei que
por trás do sorriso há o escárnio
e o tapa na cara e aceitarei agradecido
a saudade, a dor e outras coisas mais...

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