segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Amanhã é outro dia

Enquanto a lua se deita lá fora e os vagabundos se perdem nos becos molhados de sangue, eu estou aqui, invariavelmente estou aqui, e sinto a solidão enorme de não estar em lugar algum me abater como o soco do nocaute ou o sono da morte - o carinho final no meu rosto já frio, meus olhos quase fechados e entre a neblina que se forma diante da minha retina o desenho de tuas bochechas contraídas num choro convulso, o doce de tua voz desesperada ao dizer acorda, acorda, e eu ali, aqui, já não sei bem, sei apenas que estou deitado e ignoro as tuas palavras, saldo a paz com um sorriso sincero e finalmente meus olhos estão cerrados. A tua cabeça repousa sobre a minha sem que eu consiga senti-la, e também não te sinto aqui, no peito, sabe?, parece, querida, que quem morreu não fui eu, mas tu, e com o meu sorriso atravesso incólume a chuva em que tuas lágrimas se tornaram, atravesso para sentir que sem ti estarei só, sempre só, porque um dia eu prometi: sempre teu. Mas, não enxergas, e agora o público saúda meu oponente, orgulhoso por sua vitória, enquanto eu desfaleço nesse chão, o gosto de sangue na boca, o suor queimando a pele e os gritos, os gritos que não param, não param nunca, perfurando os meus tímpanos, esmagando o meu corpo contra o solo como se cada grito fosse um golpe de marreta, primeiro a cabeça, o tronco, depois os braços e as pernas são prescindíveis. E em pensar que te saudei antes de entrar no ringue, beijei tua boca com a cumplicidade do inconfidente, agarrei teu pescoço com minhas duas mãos e beijei a tua boca, beijei a tua boca e, inocente, aceitei o teu sorriso e as tuas palavras que agora são lanças enterrando-se no meu peito, e tu, com os braços levantados, o sorriso estendido por sobre mim, que não me movo, a tua língua rasgando a minha pele, deixa o sangue escorrer, sente a tua vitória amarga se dissipar, o vermelho brilhando à luz no ringue, e os flashes, os microfones e todos te saúdam, todos te desejam, no ringue eu estou esquecido, tu em meio ao alvoroço e percebo que é exatamente isso o que mereces: a vitória, a horrenda vitória, a separação final, já não nos veremos mais, minha cara, pois o perdedor que reconhece a derrota está muito acima do campeão, do grande vencedor com os pés atolados na lama e as mãos amarradas pelo ego, pelo orgulho incandescente. O punho que tanto amei me abateu porque não fugi, aliás, corri ao teu encontro enquanto tu procuravas o melhor ângulo, a hora certa para infligir o golpe derradeiro, e eu não fugi, deixei que tua mão tocasse os meus lábios e no início era carinho o que fazias, ganhaste a minha confiança, no entanto, eu não sabia, nem imaginava, dormia abraçado com o meu inimigo, o traidor, virei as costas sem esperar a punhalada, ainda é difícil acreditar que é o meu sangue que suja a tua camisa branca, que é o vermelho do meu sangue que pinta as paredes do teu quarto, o meu sangue escorrendo da tua boca e tu como um vampiro, deliciando-se com o gosto do metal, e de novo eu estirado, nos braços de alguém, carregado como um saco de arroz, um bebê acima do peso, e tu me olhas, de longe, tu me olhas, a caça ainda não acabou, tu me olhas como o predador olha para a presa que foge, quase morta, mas foge, não será hoje, não, não será hoje que tu te sentirás saciada de mim, vou te deixar com sede e com fome, só eu tenho a água, só eu tenho a comida, e tu me olhas, esse olhar de ódio e negação, e a distancia se estendendo entre nós dois e não desvio do teu olhar, como algo infinitamente belo a minha vingança se desenha exatamente em receber todos os teus ataques sem revidar, a minha vingança, a dor que eu sinto com prazer, a dor dos teus dentes cravados na minha cabeça, o meu crânio perfurado pelo teu sorriso, e eu aqui, invariavelmente, eu aqui, e tu a não sei quantos mil quilômetros, não quero saber, mas, teu olhar ainda me segue, apesar de tudo e tanto, teu olhar me vislumbra como um objetivo, a linha de chegada, tu não estás satisfeita, vai voltar, e eu deixarei outra vez que te deites ao meu lado e dividas a noite comigo, porque é assim a minha vingança, no meio seio te aceitar e aceitar as conseqüências da tua companhia pérfida, e então a noite cai, estou quase recuperado, um sono restaurador se apossa de mim e amanhã é outro dia, amanhã é outro dia... Amanhã é outro dia...

5 comentários:

Anônimo disse...

pqp! genial

Anônimo disse...

muito bom rômulo!

Anônimo disse...

Amei. A dor da relação, a contininuidade, e a quase cura quanodo adormecemos e esquecemos, mas amanhã é outro dia!
O ritmo todo, a luta, o sangue, e adormecemos...Surgiu um sorriso triste em: "(...)só eu tenho a água, só eu tenho a comida..." é a constatação, vai se repetir, e vc gosta, gostamos de cortes, de dor...
E claro, inocentes como tu disse, aceitamos sempre o sorriso, o que vem depois é onda, e a vitória é do derrotado que tem sempre mais poesia, pq a dor gera música, e o desconsolo o pensar...
Aline

Anônimo disse...

Caramba. Meu amigo velho, seus textos são reveladores. Concatenação perfeita de idéias vinda do subterfúrgios de uma mente genial.

. ramon disse...

Caramba, texto muito bem elaborado. Parabéns.